O genoma humano está cheio de genes "mortos", espécie de fósseis de milhares de anos equivalentes a um sótão cheio de sucata. Mas alguns destes genes surpreenderam os pesquisadores. Eles podem levantar dos mortos, como zumbis, para causar uma das formas mais comuns de distrofia muscular. Esta é a primeira vez, dizem os geneticistas, que um gene inativo voltou à vida para causar uma doença.
- Se fôssemos fazer uma compilação dos maiores sucessos nos estudos dos genes, esta descoberta estaria na lista - afirmou Francis Collins, geneticista e diretor do Instituto Nacional de Saúde dos EUA.
A doença, conhecida pela sigla em inglês FSHD, é sabidamente hereditária de uma forma muito simples. Mas até a publicação deste estudo nesta quinta-feira, no site da revista "Science", sua causa ainda era pouco conhecida. O gene culpado é parte do chamado "DNA lixo", regiões do genoma cuja função é, em grande parte, desconhecida. Neste caso, o gene parecia estar completamente inativo. Mas, como diz Collins, "a primeira lei do genoma é que tudo que pode dar errado dará errado". David Housman, geneticista do MIT, disse que os cientistas agora terão que procurar outras doenças com causas similares e esperam que muitas sejam encontradas.
- Assim que entendermos que algo que estava na nossa cara nos deixou completamente perdidos, teremos que nos perguntar: onde mais isso está acontecendo? - comentou.
Mas, admite, de certa forma a FSHD era uma tarefa fácil: é uma condição que afeta todas as pessoas que herdaram o gene. Outras doenças são mais sutis, afetando mais algumas pessoas que outras, e com uma coleção de sintomas maior. O truque, diz, é "ser esperto o bastante para encontrar os padrões que as liguem ao DNA". A FSHD afeta uma a cada 20 mil pessoas, causando o progressivo enfraquecimento dos músculos dos membros superiores, dos ombros e da face - pessoas com o distúrbio não conseguem sorrir. É uma doença genética dominante, isto é, se um dos pais tem a mutação no gene, cada filho tem 50% de chance de desenmvolvê-la também.
Há cerca de duas décadas, os geneticistas se aproximaram da região do genoma que parecia ser a responsável por ela> a ponta de um dos braços do cromossomo 4, feita de repetidas cópias de um gene inativo. O mesmo gene também tinha cópias no cromossomo 10, mas a região parecia inócua, sem relação com a doença. Só o cromossomo 4 seria o problema.
- Era um elemento repetido. Um gene antigo encravado no topo do cromossomo 4 sem mostras do que ele representava - conta o médico Kenneth Fischbeck, chefe do setor de neurogenética do Instituto Nacional de Desordens Neurológicas e Derrames.
E, quanto mais eles estudavam o cromossomo 4, mais intrigante ele se tornava. Ninguém que tinha o gene inativo repetido mais de 10 vezes desenvolvia a distrofia, mas algumas pessoas com menos de 10 cópias sim. Um grupo de pesquisadores da Holanda e dos EUA se reuniu há cinco anos para tentar resolver a questão e deram início a uma colaboração. Mas, enquanto estudavam o gene repetido, e aparentemente morto, o médico Stephen J. Tapscott, professor de neurologia da Universidade de Washington, notou que ele não estava completamente inativo. Ele sempre era transcrito - copiado pela célula no primeiro passo para a fabricação de uma proteína, mas as cópias se mostravam defeituosas, desfazendo-se logo. As proteínas não continham uma seção crucial, chamada sequência poli A, necessária para sua estabilização. Quando o gene "morto" tinha esta sequência, no entanto, ele voltava à vida.
- Isso acontece se, e somente se, você tem 10 ou menos cópias dele e a sequência poli A. Apenas uma destas condições não é suficiente - destaca Housman.
Mas por que as pessoas estariam protegidas se tivessem mais de 10 cópias de um gene inativo? Os pesquisadores acreditam que as cópias extras mudam a estrutura do cromossomo, efetivamente "desligando" toda aquela região para que não seja usada. O porquê do gene afetar apenas os músculos da face, dos ombros e dos braços permanece um mistério. A única pista é de que ele é parecido com outros que são importantes para o desenvolvimento do corpo humano. Enquanto isso, porém, Housman, que não estava envolvido diretamente na pesquisa, defende a descoberta como uma alternativa para tratamento.
- Ela deixou claro qual é o alvo, desligar este gene "morto". E estou certo de que podemos fazê-lo - afirma.
A grande lição, considera Collins, é que as doenças genéticas podem surgir de maneiras muito complicadas. Os cientistas acreditavam que as bases genéticas de distúrbios como doenças hereditárias dominantes seriam bem claras. Só doenças complexas, como diabetes, é que teriam origens genéticas complexas.
- Bem, mas aqui temos uma doença simples com um elaborado mecanismo causador. Não acha que esperávamos por uma coisa assim - diz.